O que é ser
cristão?
“Então, disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz, e siga-me” — (Mateus 16:24).
Antes de desenvolver o tema deste verso, comentemos os seus termos. “Se alguém”: o dever imposto é para todos os que desejam se unir aos seguidores de Cristo e alistar sob a Sua bandeira. “Se alguém quer”:
o grego é muito enfático, significando não somente o
consentimento da vontade, mas o
pleno propósito de coração, uma resolução determinada. “Vir após
mim”: como um servo
sujeito ao seu Mestre, um estudante
ao seu Professor, um soldado ao seu Capitão. “Negue”: o grego significa “negar totalmente”. Negar a si mesmo: sua natureza pecaminosa e corrompida. “E tome”: não passivamente sofra ou suporte, mas assuma voluntariamente, adote ativamente. “Sua
cruz”: que é desprezada pelo mundo, odiada pela carne, mas que é a marca distintiva de um cristão verdadeiro. “E siga-me”: viva como Cristo viveu — para a glória de Deus.
O
contexto imediato é mais solene e
impressionante. O Senhor Jesus tinha acabado de anunciar aos Seus apóstolos,
pela primeira vez, a aproximação de Sua morte de humilhação
(v. 21). Pedro se
assustou, e disse, “Tem compaixão de Ti, Senhor” (v. 22). Isto expressou
a política da mente carnal. O caminho do mundo é a procura para si mesmo e a defesa de si mesmo. “Tenha compaixão de ti” é a soma de sua filosofia. Mas a doutrina de Cristo não é “salva a ti mesmo”, mas sacrifica a ti mesmo. Cristo discerniu no conselho de Pedro uma tentação de Satanás (v. 23), e
imediatamente a rejeitou. Então, voltando-se para Pedro,
disse: Não somente “deve”
o Cristo subir à
Jerusalém e morrer, mas todo aquele que desejar ser
um
seguidor dEle,
deve
tomar
sua
cruz
(v.
24).
O “deve”
é tão imperativo num caso como no outro. Mediatoriamente, a cruz de Cristo permanece sozinha; mas experimentalmente, ela é compartilhada
por todos que entram na vida.
O que é um “cristão”?
Alguém qu sustenta
membresia em alguma igreja
terrena?
Não.
Alguém que crê num credo
ortodoxo? Não. Alguém que adota um certo modo de conduta? Não. O que, então, é um cristão? Ele é alguém que renunciou
a si
mesmo e recebeu a Cristo Jesus como Senhor (Colossenses 2:6).
Ele é alguém que toma o jugo de Cristo
sobre si e aprende dEle que é “manso
e humilde de coração”. Ele é alguém
que foi “chamado à comunhão de seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor” (1Coríntios 1:9): comunhão em Sua obediência e sofrimento agora, em Sua recompensa e glória no futuro sem fim. Não há tal coisa como pertencer a Cristo e viver para agradar a si mesmo. Não cometa engano neste ponto, “E qualquer
que não tomar a sua cruz e não vier após mim não pode ser meu discípulo” (Lucas 14:27), disse
Cristo. E novamente Ele declarou, “Mas aquele (ao invés de negar a si mesmo) que me negar diante dos homens (não “para” os homens:
é conduta, o caminhar, que está aqui em vista), também eu o negarei diante
de meu Pai, que está nos céus” (Mateus
10:33).
A
vida cristã começa com um ato de auto-renúncia, e é continuada pela auto-mortificação (Romanos 8:13). A primeira pergunta de Saulo de Tarso,
quando Cristo o apreendeu,
foi,
“Senhor, que queres
que
eu
faça?”. A vida
cristã é comparada com uma “corrida”, e o corredor é chamado para “deixar todo embaraço e o pecado que tão de perto nos assedia” (Hebreus 12:1), cujo “pecado” é o amor por si mesmo, o desejo
e a determinação
de ter o nosso “próprio caminho” (Isaías 53:6). O grande alvo, fim e tarefa posta diante do Cristão é seguir a Cristo — seguir o exemplo que Ele nos deixou (1 Pedro 2:21), e Ele “não agradou a si mesmo” (Romanos 15:3).
E há dificuldades no caminho, obstáculos na estrada, dos quais o principal é o ego. Portanto, este deve ser “negado”. Este é o primeiro passo
para se “seguir” a Cristo.
O que significa para um homem “negar a si mesmo” totalmente? Primeiro, isto significa a completa repudiação de sua própria bondade. Significa
cessar de descansar
sobre quaisquer obras nossas, para nos recomendar a Deus. Significa
uma aceitação sem reservas do veredicto de Deus que “todas as nossas justiças [nossas melhores performances], são como trapo da imundícia” (Isaías
64:6). Foi neste ponto que
Israel falhou: “Porquanto, não conhecendo a justiça
de Deus e procurando estabelecer a sua própria justiça, não se sujeitaram à justiça de Deus” (Romanos 10:3). Agora, contraste com a declaração de Paulo: “E seja achado nEle, não tendo justiça própria” (Filipenses 3:9).
Para
um homem “negar a
si mesmo” totalmente, deverá renunciar completamente sua própria
sabedoria. Ninguém pode entrar no reino
dos céus, a menos que tenha se tornado “como
criança” (Mateus 18:3). “Ai
dos que são sábios a seus próprios olhos
e prudentes em seu próprio conceito!” (Isaías 5:21). “Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos” (Romanos 1:22). Quando o Espírito Santo aplica o Evangelho em poder numa alma, é para “destruir os conselhos e toda altivez que se levanta contra o conhecimento de Deus, e levando cativo todo entendimento à obediência de Cristo” (2 Coríntios 10:5). Um modo sábio para o todo cristão adotar
é “não te estribes no teu próprio entendimento” (Provérbios 3:5).
Para um homem “negar a si mesmo” totalmente, deverá renunciar completamente sua própria força. É “não confiar na carne” (Filipenses 3:3).
É o coração se curvando à declaração positiva de Cristo:
“Sem
mim, nada podeis fazer” (João
15:5). Este é o ponto no qual Pedro falhou: (Mateus 26:33). “A soberba precede a ruína,
e a altivez do espírito precede a queda” (Provérbios 16:18). Quão
necessário é, então,
que prestemos atenção à 1 Coríntios 10:12: “Aquele, pois, que cuida estar em pé, olhe que não caia”! O
segredo da força espiritual reside em reconhecer nossa fraqueza pessoal: (veja
Isaías 40:29; 2 Crônicas 12:9). Então, “fortifiquemo-nos na graça que há em Cristo Jesus” (2 Timóteo 2:1).
Para um homem “negar a si mesmo” totalmente, deverá renunciar completamente sua própria vontade. A linguagem do não-salvo é, “Não queremos que este Homem reine sobre nós” (Lucas
19:14). A atitude do cristão é, “Para mim, o viver é Cristo” (Filipenses 1:21) — honrá-Lo, agradá-Lo, servi-Lo. Renunciar sua própria vontade
significa atender à exortação de Filipenses 2:5, “Que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo
Jesus”, o qual é definido nos versos que imediatamente seguem
como de abnegação. É o reconhecimento prático
de que “não sois de vós mesmos, porque fostes comprados por bom preço” (1 Coríntios
6:19,20). É dizer com Cristo, “Não seja,
porém, o que eu quero, mas o que tu queres” (Marcos 14:36).
Para um homem “negar a si mesmo” totalmente, deverá renunciar completamente
suas luxúrias ou desejos carnais. “O ego do homem é um feixe
de ídolos” (Thomas Manton, Puritano), e estes ídolos devem ser repudiados.
Os não-cristãos são “amantes de si mesmos” (2 Timóteo 3:1);
mas aquele que foi regenerado
pelo Espírito diz com Jó, “Eis que sou vil” (40:4), “Eu me abomino” (42:6). Dos não-cristãos está escrito, “todos buscam o que é seu e não o que é de Cristo
Jesus” (Filipenses 2:21);
mas dos santos de Deus está registrado,“eles não amaram a sua vida até à morte” (Apocalipse
12:11). A graça de Deus está “ensinando-nos que, renunciando à impiedade e às concupiscências
mundanas, vivamos neste presente século sóbria, justa e piamente” (Tito 2:12).
Esta negação do ego que Cristo requer de todos
os Seus seguidores deve ser universal.
Não há nenhuma reserva, nenhuma exceção feita: “Nada disponhais para a carne no tocante às suas concupiscências” (Romanos 13:14). Deve ser constante, não ocasional: “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz e siga- me” (Lucas
9:23). Deve ser espontânea, não forçada, realizada com satisfação, não
relutantemente: “Tudo
quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como para o Senhor e não para homens” (Colossenses 3:23). Ó, quão
impiamente o padrão que Deus colocou diante de nós tem sido rebaixado!
Como isso condena a vida acomodada, agradável à carne e mundana de tantos que professam (mas, de maneira vã) que eles são “cristãos”!
“E
tome a sua cruz”. Isto se refere não à cruz como um objeto de fé, mas como uma experiência na alma. Os benefícios legais do Calvário são recebidos através do crer, quando a culpa do pecado é cancelada, mas as virtudes experimentais da Cruz de Cristo são somente desfrutadas à medida
que somos,
de
um
modo prático, “conformados
com
a
Sua morte” (Filipeneses 3:10).
É somente à medida que realmente aplicamos a cruz às nossas vidas diárias, regulamos nossa conduta pelos
seus princípios, que ela se torna eficaz sobre o poder do pecado que habita em nós. Não pode haver ressurreição onde não há morte, e não pode haver andar prático “em novidade de vida” até que “carreguemos no corpo o morrer do Senhor Jesus” (2 Coríntios 4:10). A “cruz” é o sinal, a evidência, do discipulado cristão. É sua “cruz”, e não o seu credo, que distingue um verdadeiro seguidor de Cristo do mundano religioso.
Agora, no Novo Testamento a “cruz” tem o significado de realidades definidas. Primeiro, ela expressa o ódio do mundo. O Filho de Deus veio aqui não para julgar, mas par salvar;
não para punir, mas para redimir. Ele veio aqui “cheio
de graça e verdade”. Ele sempre esteve à
disposição dos outros: ministrando
aos necessitados, alimentando os famintos, curando os enfermos, libertando os possessos pelo demônio, ressuscitando os mortos. Ele era cheio de compaixão: gentil como um cordeiro; inteiramente sem pecado. Ele trouxe com Ele felizes notícias de
grande alegria. Ele procurou os perdidos, pregou aos pobres, todavia, não desdenhou dos ricos; Ele perdoou pecadores. E, como Ele foi recebido? Que tipo de recepção os homens Lhe deram? Eles O “desprezaram e rejeitaram” (Isaías 53:3).
Ele declarou, “Eles Me odeiam sem uma causa” (João 15:25). Eles tiveram sede de Seu sangue. Nenhuma morte ordinária os apaziguaria. Eles demandaram que Ele deveria ser crucificado. A Cruz, então, foi a manifestação do ódio inveterado do mundo pelo Cristo de Deus.
O
mundo não mudou, não mais do que o etíope pode mudar sua pele ou o leopardo
suas manchas. O mundo e Cristo ainda estão em aberto antagonismo. Por conseguinte, está
escrito: “Aquele, pois,
que
quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus” (Tiago 4:4).
É impossível andar com Cristo e
comungar com Ele, até que tenhamos nos separado do mundo. Andar com Cristo necessariamente envolve compartilhar Sua humilhação: “Saiamos, pois, a Ele, fora do arraial, levando o seu vitupério” (Hebreus 13:13). Isto foi o que Moisés fez (veja Hebreus 11:24-26).
Quanto mais próximo eu andar de Cristo, mais eu serei mal-entendido (1 João 3:2), ridicularizado
(Jó 12:4) e detestado pelo mundo (João 15:19). Não cometa engano aqui: é extremamente impossível continuar com o mundo
e ter comunhão com o Santo Cristo. Portanto, “tomar” minha “cruz” significa, que eu deliberadamente convido a inimizade do mundo através da minha recusa em
ser “conformado”
a ele (Romanos 12:2). Mas, o que importa o olhar carrancudo do mundo,
se
estou desfrutando os sorrisos do Salvador?
Tomar minha “cruz” significa uma
vida voluntariamente rendida a Deus. Como o ato dos homens ímpios, a morte de Cristo foi um assassinato;
mas como o ato do próprio Cristo,
foi um sacrifício voluntário, oferecendo a Si mesmo a Deus. Foi também um ato de obediência a Deus. Em João 10:18 Ele disse, “Ninguém a [Sua vida] tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou”. E por que Ele o fez? Suas próximas palavras nos dizem: “Este mandato recebi de meu Pai”. A cruz foi a suprema demonstração da
obediência de Cristo. Nesta Ele foi o
nosso
Exemplo. Uma vez mais
citamos Filipenses 2:5: “Que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo
Jesus”. E nos versos seguintes nós vemos
o Amado do Pai tomando a forma de um
Servo, e tornando-Se
“obediente até a morte, e morte de cruz”. Agora, a obediência de Cristo deve ser a obediência do cristão — voluntária, alegre, sem reservas, contínua. Se esta obediência envolve vergonha e sofrimento, acusação e perda, não
devemos
nos
acovardar, mas por o nosso
rosto
“como
um seixo” (Isaías 50:7). A cruz é mais do que o objeto da fé do cristão, ela é o sinal de discipulado, o princípio
pelo qual sua vida
deve ser regulada. A “cruz” significa rendição e dedicação a Deus: “Rogo-vos, pois, irmãos, pelas
misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional” (Romanos 12:1).
A “cruz” significa serviço vicário e sofrimento. Cristo deu a Sua vida pelos outros, e Seus seguidores são chamados a estarem dispostos para fazerem o mesmo: “Devemos dar nossa vida
pelos
irmãos” (1 João 3:16). Esta é a lógica inevitável do Calvário. Somos chamados para seguir o exemplo de Cristo, para a companhia de Seus sofrimentos, e para ser participantes
em Seu serviço. Assim
como Cristo “a si mesmo se esvaziou” (Filipenses 2:7),
assim devemos fazer. Assim como Ele “veio para servir, e não para ser servido” (Mateus 20:28), assim
devemos ser. Assim como Ele “não agradou a si mesmo” (Romanos 15:3), assim devemos fazer.
Assim como Ele lembrou dos outros, assim devemos lembrar: “Lembrai-vos dos encarcerados, como se presos com eles; dos que sofrem maus tratos, como
se, com efeito,
vós mesmos em pessoa fôsseis os maltratados” (Hebreus 13:3).
“Porquanto, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a vida por minha causa achá-la-á” (Mateus 16:25). Palavras quase idênticas a estas
são encontradas novamente em Mateus 10:39. Marcos 8:35, Lucas 9:24; 17:33,
João 12:25. Certamente, tal repetição
mostra a profunda importância de notar e prestar atenção a este dito de Cristo. Ele morreu para que nós pudéssemos viver (João 12:24), e assim devemos fazer (João 12:25). Como Paulo,
devemos ser capazes de dizer “Em nada tenho a minha vida por preciosa” (Atos
20:24). A “vida” que é vivida para a gratificação do ego neste mundo, está “perdida” para eternidade; a vida que é sacrificada para os interesses próprios e rendida
a Cristo, será “achada” novamente, e preservada durante toda a eternidade.
Um jovem universitário
graduado, com prospectos brilhantes, respondeu ao chamado
de Cristo para uma vida de serviço a Ele na Índia, entre a casta mais baixa dos nativos. Seus amigos exclamaram: “Que tragédia! Uma vida lançada fora!” Sim, “perdida”, até onde diz respeito a este mundo, mas “achada” novamente no mundo porvir!
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